Encontre o seu imóvel

Veja a lista de apartamentos à venda em São Paulo

Litoral

Em Santos, três portuguesas protegem bordado do esquecimento

Raquel Cunha/Folhapress
Detalhe da técnica richelieu, um bordado vazado
Detalhe da técnica richelieu, um bordado vazado

Elas brincam que nasceram com a agulha na mão, mas é quase isso. Na infância, em vez de brincar, passavam horas sentadas ao lado de mães e avós entre linhas e panos para ajudar no sustento da família. Primeiro em Portugal, na Ilha da Madeira, depois no Brasil, no Morro São Bento, em Santos.

A geografia parecida, com montanhas em frente ao mar, e a possibilidade de melhorar de vida, trouxeram as famílias portuguesas para a cidade há dois séculos.

Os maridos chegavam primeiro e mandavam cartas para as mulheres, que, depois de mais de dez dias no mar, desembarcavam no Brasil.

"A 'portuguesada' era assim. Todo mundo queria embarcar para um futuro melhor", diz Maria Theresa Pestana, 77, no ofício há 70 anos.

Foi assim para ela, que botou os pés no morro aos 21 anos, em 1959. O mesmo aconteceu para Isabel Fernandes, 87, e para a família de Maria Fernandes, 81.

Juntas, são as três últimas integrantes da Associação das Bordadeiras do Morro São Bento.

Raquel Cunha/Folhapress
Dona Theresa, 77, faz bordado em casa
Dona Theresa, 77, faz bordado em casa

BORDADEIRAS UNIDAS

Não se sabe ao certo quantos dos mais de 7 mil habitantes do morro vieram da Ilha da Madeira, mas eram maioria no século 19, segundo a Prefeitura de Santos.

As mulheres trouxeram consigo o que era fonte de renda no lugar onde nasceram. Segundo dona Theresa, "quem não bordava não tinha dinheiro" na ilha portuguesa.

Em Santos, a procura pelo serviço foi grande. "Quando cheguei, minha irmã já tinha uma encomenda para mim", lembra Theresa.

Para Cláudia Gonçalves, 50, que ajudou a produzir o documentário "A Linha e a Vida", sobre a história dessas mulheres, "mesmo se a renda não dependesse disso, elas seguiriam bordando."

Dona Theresa e dona Maria são prova disso. Nunca deixaram a atividade, apesar das objeções dos maridos.

"Todo português tinha ciúmes do bordado de sua mulher", conta Theresa. "Mas toda portuguesa continuava bordando, mesmo escutando bronca", completa.

Para Dona Maria, 88, filha de portugueses que vieram da Ilha da Madeira, unir-se à associação das bordadeiras foi uma forma de se libertar do marido "machão" que não queria que ela trabalhasse fora. "Só depois que ele morreu eu passei a bordar para fora."

Foi dona Theresa que fundou a associação, há cerca de 30 anos. A ideia veio de um jornalista amigo. "Nós fomos nos reunindo no salão da igreja. Algumas diziam que era bobagem, que não ia dar em nada. Mas deu", conta.

As bordadeiras ganharam espaço na cidade e começaram a expor seus trabalhos.

Atualmente, o trio expõe as peças no Orquidário de Santos, todo segundo domingo do mês. Além disso, dá aulas gratuitas de bordado no Centro Cultural e Esportivo do Morro São Bento.

"Adoro ensinar. Cada uma leva sua tesourinha, sua agulha, seu pedacinho de pano. Conversamos, lanchamos, morremos de rir. As velhinhas aprontam, viu?", brinca dona Maria.

RESISTÊNCIA

O ofício, antes essencial para o sustento de uma família, hoje serve como distração. "Quando esses bordados de máquina apareceram, tiraram todo o nosso valor", diz dona Theresa.

Ela conta que um trabalho que passaria dias fazendo e venderia por R$ 250 é encontrado por R$ 30 na cidade, mas sem as marcas cuidadosas de cada bordadeira. "Gosto do famoso richelieu [bordado vazado]. A gente borda e depois recorta. É o verdadeiro bordado da Ilha da Madeira", conta.

É só perguntar o preferido de Dona Maria que ela solta várias palavras técnicas: ponto cheio, crivo, caseado. Nomes que sua neta não sabe, diz. "A Letícia não quer saber de bordar. Mexe com os dedos, mas só no computador."

Para Theresa, é triste ver a falta de interesse dos mais novos e as máquinas substituindo o trabalho manual. "É muito duro ver uma coisa sagrada para mim acabando dessa forma", afirma.

Maria brinca que, se dependesse do bordado, "iria morrer de fome", mas é no artesanato que ela consegue esquecer os problemas. "Não penso em nada de ruim quando bordo, é uma terapia", diz.

Na cidade ou no morro, as duas mulheres mantém com o bordado o mesmo vínculo com o lugar em que construíram suas vidas. Dona Theresa sente saudades do Morro São Bento, de onde saiu há alguns anos. "Todo mundo fala com a gente lá. Aqui embaixo a gente entra, sai, e ninguém dá oi", conta.

Dona Maria diz que não troca o morro por nenhum lugar no mundo. "Daqui eu vejo a praia, os navios entrando e saindo. Fico bem pertinho do céu", diz.

Todas insistem em bordar, ensinar e expor seus trabalhos. Diariamente, dobram o linho, colocam o papel carbono por cima, riscam os desenhos e bordam a mesma técnica repetida há séculos.

"E eu vou continuar até quando Deus me der vida para eu ir", afirma Theresa.

Bairros da Série