Santana/Casa Verde

Trem da Cantareira inspirou Adoniran Barbosa e casais da região

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Maria-fumaça deixa a estação Cantareira no fim dos anos 1930
Maria-fumaça deixa a estação Cantareira no fim dos anos 1930

Canção-símbolo de São Paulo, "Trem das Onze" também foi pano de fundo para a história de amor entre a pensionista Herminda Tavela Abrantes e o funcionário público Ismael Abrantes.

Herminda, 81, e Ismael, morto há 12 anos, se conheceram em 1952, no ramal Guarulhos do Tramway da Cantareira -estrada de ferro que Adoniran Barbosa eternizou com o samba de 1964.

"Eu trabalhava no Bom Retiro, e o Ismael, na Luz. Como eu era novata no trem, todos os rapazes me paqueravam", lembra Herminda. "Quando a locomotiva chegava, corriam para me segurar um lugar. Eu sempre escolhia o assento que Ismael guardava."

Na Estação Tamanduateí, atual região do Parque Dom Pedro II, Ismael pediu Herminda em namoro. Todo final de tarde, o casal se encontrava na Luz, onde ela descia de um bonde; depois, embarcavam juntos na Maria Fumaça. Casaram-se em 1954.

"Era um trem operário, que levava pessoas simples para seus trabalhos no comércio ou indústria", conta a moradora do bairro do Mandaqui. "A música do Adoniran Barbosa marcou a gente, porque nos lembrava do nosso próprio passado."

Construída em 1893 para transportar material do centro até o reservatório que seria erguido na Cantareira, a linha foi inaugurada no ano seguinte. O objetivo inicial era melhorar o sistema de distribuição de água na cidade, mas a linha férrea acabou sendo decisiva para a urbanização da zona norte.

"Por causa do trem, muitos bairros nasceram ou se desenvolveram de fato: Vila Mazzei, Tremembé, Horto Florestal", diz o pesquisador Ralph Mennucci Giesbrecht. "Além disso, era vital para os moradores daquela região. Naquela época, as pessoas andavam de carroça; os carros chegaram, mas só os ricos podiam comprá-los."

Como atendia bem à população, o sistema férreo permaneceu mesmo depois de o reservatório ficar pronto. Nos fins de semana, o programa era pegar o trem com a família e fazer piquenique no parque da Cantareira.

A linha passou a transportar materiais usados na construção de cartões-postais da cidade: Catedral da Sé, Theatro Municipal, Mercadão, Liceu de Artes e Ofícios.

Em 1908, foi criado um ramal para seguir sentido leste, com parada final na Estação Guarulhos e inicial na Estação Areal. "Esta última ficava onde hoje está a Estação Carandiru do metrô", diz Eduardo Britto, autor do livro "São Paulo Tramway Tremembé" e editor do portal ZN na Linha. "O segundo ramal chegava a outras áreas da zona norte, como Parada Inglesa, Tucuruvi e Jaçanã."

A Parada Inglesa também surgiu no rastro dos trilhos. O nome é homenagem ao dono do terreno por onde a linha, o inglês William Harding. Ali, foi construído um ponto para descarga de material. Virou Estação Parada Inglesa, inaugurada em 1927.

BRASA E ROMANCES

"A zona norte teve um desenvolvimento tardio devido à várzea do Tietê, que era um obstáculo natural: do Bom Retiro até Santana, tudo ficava alagado. Isso isolava as chácaras da região, o que reforça o valor do Tramway da Cantareira para o seu progresso", aponta Britto.

Até hoje, moradores antigos cultuam o "trenzinho da Cantareira", como é conhecido. "Eu era criança e pegava o trem no Tremembé com minha mãe, para visitar tias", lembra a aposentada Lourdes Martos Arrais, 70, que ainda vive no mesmo bairro.

"Era gostoso: a paisagem bonita do Horto, aquele tique-taque, as brasinhas que a locomotiva lançava queimavam nossa roupa. Os adultos diziam que muitos romances começaram no trenzinho."

No trecho entre Luz e Santana foi implantada parte da linha azul do Metrô, nos anos 70. Desde 1998, ela segue até o Tucuruvi. O traçado é parecido com o do antigo ramal de Guarulhos.

Incorporada à Estrada de Ferro Sorocabana em 1941, a linha original parou em 1964, ano em que estreavam no rádio os versos "Não posso ficar nem mais um minuto com você/sinto muito, amor/mas não pode ser...".

Em 1965, o segundo ramal foi extinto. "Não há restos do trem em museus. Sucatearam quase tudo", diz Giesbrecht.

A Estação Cantareira é a única remanescente preservada da linha. Desativada, fica no Clube de Campo da Cantareira da Associação Sabesp, aberto a visitação.

CLUBE DE CAMPO DA CANTAREIRA
QUANDO de terça a sexta, das 9h às 17h, e sábado, domingo e feriados, das 9h às 18h
QUANTO R$ 10 (adulto) e R$ 5 (criança)

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